Um cinema-Tarahumara: os filmes de Raymonde Carasco e Régis Hébraud by Icaro Junho 04, 2024 0 Investigação, Novidades

I sessão
Segunda-feira, 9 de Outubro de 2023, às 18h

Um cinema-Tarahumara: os filmes de Raymonde Carasco e Régis Hébraud
Projecção seguida de uma conversa presencial com Régis Hébraud.

Los Pascoleros – Tarahumaras 85, França-México, 1996, 27’.
Ciguri 98 – La Danse du peyotl, França-México, 1998, 40’.

Em 1976, Raymonde Carasco e Régis Hébraud partem pela primeira vez para o México em busca de traços do processo de produção de ¡Que viva México!, filme inacabado de Eisenstein. Seguir-se-ão, até 2001, outras 17 viagens — “o acontecimento de uma vida”, nas palavras de Carasco — guiadas pelas escritas, literária e cinematográfica, de Artaud e Eisenstein.
Realizado em 1979, Tarahumaras 78 é o primeiro filme consagrado ao povo Tarahumara da Sierra Tarahumara, no Estado de Chihuahua, no Noroeste do México. Carasco e Hébraud compõem, a partir de então, um “fresco” (Nicole Brenez) da vida social e dos ritos Tarahumara, sobre o pano de fundo dos textos de Artaud (de Voyage aux pays des Tarahumaras de 1936 ao poema Tutuguri de 1948), em que se dissolve a separação entre a esfera material e a esfera ritual. A démarche dos dois cineastas não é simplesmente etnográfica ou poética, mas “etno-poética”, expressão de Brenez. 1

Produzem “escritas do ver” (Carasco) que, situando-se nas margens do cinema etnográfico e do cinema experimental e redesenhando o seu traçado, conferem uma elaborada expressão formal ao encontro da alteridade e tornam visível aquilo que é do domínio do invisível — o encantamento, a experiência xamânica, a alucinação, a sensação, o mundo do ciguri, planta sagrada Tarahumara. Na obra de Carasco e Hébraud, a dimensão ontológica do cinema enquanto escrita do visível é indissociável da sua capacidade para transfigurar o real e expandir a percepção, produzindo imagens mentais e re-estruturando os modos perceptivos e cognitivos dominantes. Assente em modos de produção contingentes e filmada preponderantemente em 16 mm, a filmografia de Carasco e Hébraud emerge de uma relação dialógica com a alteridade, método que, ao estabelecer um complexo jogo temporal e espacial e uma ecologia de perspectivas dinâmica, desloca radicalmente a relação entre sujeito e objecto.

Os filmes de Carasco e Hébraud são pela primeira vez exibidos em Portugal depois do ciclo “Figuras da Dança no Cinema”, comissariado por Ricardo Matos Cabo na Culturgest, em 2005.
A projecção será seguida de uma conversa aberta ao público entre Régis Hébraud, Raquel Schefer, curadora do programa, e a investigadora Salomé Lopes Coelho.

Los Pascoleros – Tarahumaras 85 16 mm, preto e branco e cor, som óptico, 27’, França-México, 1996.
Escrita e realização: Raymonde Carasco.
Imagem e som: Régis Hébraud.
Montagem: Raymonde Carasco e Régis Hébraud.
Excertos de textos de Antonin Artaud lidos por Raymonde Carasco.
Sonoplastia: Didier Lesage.

Sinopse: “Los Pascoleros – Tarahumaras 85 foi filmado durante as celebrações da Páscoa de 1985. Mostra o reverso, os bastidores, das encenações da Paixão na aldeia de Norogachic, no México.
Estamos perante as pinturas corporais de três tipos de dançarinos das festas pascais: fariseos, pintos, pascoleros. Os ritos de iniciação, secretos, de dois Pascoleros, filmados pela primeira vez, constituem o cerne deste documento.
A alternância entre sequências nocturnas, filmadas a preto e branco, e pinturas e danças diurnas, filmadas a cores, conferem aos textos de Antonin Artaud a sua dimensão escritural. A versão de 1936 de Voyage au Pays des Tarahumaras é reescrita na última fase da vida de Artaud, em 1947, sob a forma de um novo Théâtre de la Cruauté e de um novo corpo: Para viver, é preciso ter um corpo…, O teatro da crueldade quer pôr a dançar pálpebras par a par com cotovelos, rótulas, fémures e dedos dos pés e ser visto.”

Raymonde Carasco
Cineasta, teórica do cinema e professora universitária, Raymonde Carasco (1939-2009) desenvolveu uma investigação sobre o conceito de “fora de quadro”, elaborado por Eisenstein, no âmbito da sua tese de doutoramento (1975), orientada por Roland Barthes. Realizou mais de vinte filmes, entre os quais se contam Gradiva Esquisse I (1978), Rupture (1989) e 17 curtas-metragens e médias-metragem sobre o povo Tarahumara do México. Exemplificando a articulação entre teoria e prática, a cineasta experimenta na sua filmografia as noções desenvolvidas em torno do “fora de quadro” na sua tese, publicada em 1979 com o título Hors cadre Eisenstein (Paris: Macula). Publicou diversos artigos sobre Barthes, Pasolini, Resnais, Durais, Bousquet e Artaud, entre outros.

Régis Hébraud
“Nascido em 1938, em França. Encontrei Raymonde Carasco em 1955 e casei-me com ela em 1960. Estudos de Matemática em Montpellier e em Paris (1958-1964). Estudos de Informática de 1979 a 1985. Professor de Matemática (e de Informática a partir de 1985) de 1964 a 1999. Formação em cinema durante a rodagem (operador de câmara Bruno Nuytten) e a realização de Gradiva -Esquisse I (1977-78). Acompanhei Raymonde Carasco nas 18 viagens ao México entre 1976 e 2001. Tornei-me, a partir de 1977, no seu operador de câmara e de som e no seu montador e realizámos juntos toda a série de filmes Tarahumara.”

Raquel Schefer
Raquel Schefer é investigadora, realizadora, programadora e Professora Associada na Universidade Sorbonne Nouvelle, onde concluiu o seu doutoramento em Estudos Cinematográficos em 2015. Publicou a obra El Autorretrato en el Documental. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT no CEC/Universidade de Lisboa, no IHC/Universidade Nova de Lisboa e na Universidade do Western Cape. É co-editora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana e conselheira de programação do International Film Festival Rotterdam (IDFA). No Hangar — Centro de Investigação Artística, programou, entre outros eventos, o ciclo Seeing Being Seen: Territórios, Fronteiras, Circulações (2020-2022).

Salomé Lopes Coelho
Investigadora de pós-doutoramento no Instituto de Comunicação da NOVA – FCSH/ Universidade NOVA de Lisboa, com um projecto sobre os ritmos da matéria vegetal e inorgânica no cinema experimental latino-americano. Doutorada em Estudos Artísticos (FCSH – UNL), com uma tese sobre ritmo e filosofia, no cinema de Chantal Akerman, Raymonde Carasco e Régis Hébraud. Foi investigadora visitante e leccionou na Universidade Nacional de Artes, Buenos Aires. É co- editora de La Furia Umana – Revista de Teoria e História do Cinema.

II módulo: Bruno Varela, cineasta etno-experimental
Sexta-feira, 24 de Novembro, 18h
Projecção seguida de uma conversa presencial com Bruno Varela, moderada por Raquel Schefer.
Projecção dos filmes El Monolito, México, 2019, 40’ e El Prototipo, México, 2022, 63’.

Sábado, 25 de Novembro, 18h
Atelier de fitogramas (fotografia analógica sem câmara com materiais orgânicos vegetais) coordenado por Bruno Varela.
Actividade gratuita aberta ao público com inscrição prévia através de formulário disponível no site do Hangar.
Limite máximo de 15 participantes.

Uma das figuras mais importantes e singulares do cinema experimental contemporâneo, o cineasta e videoartista mexicano Bruno Varela inicia a sua carreira em 1992 em Oaxaca, no quadro do projecto de vídeo comunitário indígena Ojo de Agua Comunicación, e, mais tarde, em Chiapas, no Yucatán e na Bolívia, onde forma em vídeo comunicadores autóctones. A praxis cinematográfica de Varela, definida pelo cineasta como uma “retroguarda”, articula procedimentos formais do cinema experimental, como o reemprego polifónico de imagens-sons de arquivo, com elementos culturais autóctones, através dos quais se tornam sensíveis, sobre o pano de fundo do contexto histórico-político mexicano, cosmovisões e cosmologias adjacentes. Em El Monolito (2019), média-metragem que será apresentada no Hangar, Varela toma como ponto de partida Un amour d’UIQ, guião de ficção científica de Félix Guattari. Em 1980, o psicanalista e filósofo francês começa a escrever, em colaboração com o cineasta norte-americano Robert Kramer, o guião deste projecto cinematográfico inacabado que procura, segundo Silvia Maglioni, “oferecer um modelo de cinema ‘popular’ subversivo e desejante”. Varela transpõe o projecto de Guattari e Kramer para o contexto da Revolta de Oaxaca de 2006, um dos mais importantes levantamentos populares dos anos 2000 no México. Para tal, o cineasta reemprega materiais de arquivo que filmou durante a insurreição, desenvolvendo formas visuais e sonoras de montagem que se inscrevem, tal como o trabalho de Kramer com o Colectivo Newsreel — e, mais tarde, em Portugal (veja-se a longa-metragem Scenes from the Class Struggle in Portugal, 1977-79) —, na genealogia do newsreel experimental e que contribuem para a sua desestruturação formal e epistemológica. Se a câmara de Varela restitui a espessura sensível do acontecimento político na sua temporalidade dinâmica, a montagem deste “an-arquivo”, ao operar sobre um princípio de indeterminação de género, põe em crise o sistema eidético do cinema documental e a relação convencional entre a representação do real e a sua efabulação. Os agenciamentos colectivos de enunciação, através das múltiplas instâncias discursivas do filme, criam um complexo jogo de pontos de vista e apontam para a possibilidade de uma figuração não-fenomenológica da perspectiva desantropocêntrica do Universo Infra-Quark do guião de Guattari. El Prototipo, “filme especulativo” de 2022 que também será projectado no Hangar, radicaliza os pressupostos e procedimentos formais e epistemológicos de El Monolito. Transposição cinematográfica de outro texto de ficção cientifica — o romance Valis (1981), de Philip K. Dick —, El Prototipo “entrança”, verbo utilizado no seu intertítulo final, materiais de arquivo heteróclitos e intermediáticos, explorando, através do princípio de “opera aperta”, tanto os nós, quanto as fissuras do tecido fílmico e agenciando pontos de vista que desestruturam o binarismo sujeito-objecto. A câmara móvel e táctil, roçante e recolectora, ritualiza o proprio processo de representação cinematográfica, questionando o sistema disciplinar da etnografia. Os filmes de Varela, assentes numa política materialista dos modos de produção, são exibidos pela primeira vez em Portugal.

El Monolito, Bruno Varela, México, 2019, 40’
Sinopse
“O monolito é habitado por uma entidade minúscula, um universo consciente, um deus ou uma das suas formas. Na sua tentativa de ressonância com o humano, só logra avivar o fogo. Tudo arde para preparar a nova semeadura. Filme-obra negra, materiais de baixa resolução, intensidade, fluxos, corpos afectados e corpos afectando outros corpos. A revolta é um estado de presente, expansivo. Uma longa-metragem curta, uma curta-metragem longa. Arquivos de Oaxaca em 2006, premonições, sonhos de máquinas induzidas, sinais emanados a partir do espaço profundo. O fogo no presente, como uma antecipação do momento.

Apropriação livre de uma premissa de Félix Guattari, declaração de amor incendiária e extra- terrestre. Um cartaz formidável e excelentes fotogramas. Um filme fracassado na sua temporalidade, um filme ainda por vir.”

(Bruno Varela)

El Prototipo, Bruno Varela, México, 2022, 63’
Sinopse
“Uma entidade mutável enviada de outro tempo. Um ser audiovisual quase consciente, dotado de vontade, enviado de um qualquer futuro, ou de muito longe. O tempo é um simulacro, um artefacto, é possível entrar e sair do seu fluxo através de outras geometrias.

Através de perímetros sugeridos no romance Valis, de Philip K. Dick, o Protótipo é a manifestação de uma inteligência superior, inscrita em película de 16 mm perdida pela passagem de décadas e encontrada num mercado de antiguidades. Contém um sinal da fonte primordial. O motor do projecto activa-se na possibilidade de conceber um filme como um ser volátil que se re-organiza frente a cada espectador. Que é diferente em cada projecção e que caminha para a sua auto-destruição material”.

(Bruno Varela)

Bruno Varela
“Bruno Varela (Cidade do México, 1971). Artista audiovisual formado pela Universidade Autónoma Metropolitana em Comunicação Social. Desde 1992, dedica-se a tempo inteiro à investigação-produção de cinema e vídeo. O seu processo tem sido desenvolvido essencialmente no Sul geográfico e conceptual do continente, entre Oaxaca, Chiapas, Yucatán e a Bolívia. O seu trabalho tem sido apresentado em múltiplos fóruns, exposições e e festivais no México e no estrangeiro, tais como o Guggenheim NY, o Getty Research Institute LA, o Redcat Center for Contemporary Arts LA, a Bienal de Havana, o Centro de Arte Reina Sofía, a Bienal de la Imagen en Movimiento, o Festival Internacional de Oberhausen ou o Ann Arbor Film Festival. Recebeu prémios e menções honrosas em vários festivais, como o Prémio E–flux do Festival de Oberhausen (2015). Recebeu a distinção Media Artist da Fundação Rockfeller em 2006.”
(Bruno Varela)

Raquel Schefer
Raquel Schefer é investigadora, realizadora, programadora e Professora Associada na Universidade Sorbonne Nouvelle, onde concluiu o seu doutoramento em Estudos Cinematográficos em 2015. Publicou a obra El Autorretrato en el Documental. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT no CEC/Universidade de Lisboa, no IHC/Universidade Nova de Lisboa e na Universidade do Western Cape. É co-editora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana e conselheira de programação do International Film Festival Rotterdam (IDFA). No Hangar — Centro de Investigação Artística, programou, entre outros eventos, o ciclo Seeing Being Seen: Territórios, Fronteiras, Circulações (2020-2022).