O olhar que não se esquiva: poéticas da memória na obra de Maya Watanabe
5 de Setembro às 18h30
Projecções:
– “Bullet”, Maya Watanabe, 2021, Peru-Holanda, 10’
– “Liminal”, Maya Watanabe, 2019, Peru-Holanda, 64’,
Seguida de conversa entre Maya Watanabe e Raquel Schefer
O avento será realizado em castelhano
© Maya Watanabe.
Em “ESMA: Fenomenología de la desaparición”, a propósito da prática sistemática de desaparecimento forçado no quadro da ditadura militar argentina (1976-1983) e das suas construções memorialísticas, Claudio Martyniuk afirma que “Não ver é a posição atribuída ao espectador”, apelando, em seguida, a “fitar de frente, sem esquivar o olhar”. Debruçando-se sobre outro processo histórico-político — o “Periodo de la Violencia” no Peru (1980-2000), marcado pela violência de Estado, a passagem à luta armada do Sendero Luminoso e a fundação do Movimiento Revolucionario Túpac Amaru —, “Liminal” (2019) e “Bullet” (2021), instalações vídeo monocanais apresentadas na sua versão para sala de cinema realizadas pela artista e cineasta peruana Maya Watanabe, parecem responder ao apelo do filósofo e epistemólogo argentino. Nos dois filmes, Watanabe olha e faz olhar de frente, incisiva e liminarmente, os vestígios da violência de Estado — indissociável da violência de classe, raça e género, bem como, de uma maneira mais vasta, da persistência de estruturas coloniais no território do antigo “Virreinato del Perú” — e da violência revolucionária, colocando o espectador numa posição de visualização ativa, condição primeira dos processos de ação, justiça e reparação.
Em “Liminal”, Watanabe filma duas valas comuns, uma delas em Ayacucho, epicentro do conflito, contendo os despojos mortais de camponeses assassinados daquela remota região andina, exumados pelo “Equipo Forense Especializado” do Ministério Público do Peru. A obra abarca um complexo horizonte histórico que não só contempla os traços da violência de Estado e das derivas da “Guerra Popular”, como também o devir, um “continuum” aberto entre o passado, o presente e o futuro como tempo de negociação do trauma. Se “Liminal” se inscreve sobre este pano de fundo histórico-político, coloca questões que se prendem nāo unicamente com a poética, mas também com a ética da representação. Antes de mais, que olhar é esse que não se esquiva? Os dois casos de violência abordados no filme remontam a 1984 e, logo, à primeira infância de Watanabe, nascida um ano antes. Se este aspecto pressupõe um olhar móvel e historicamente situado, voltado para o mundo, mas também para si, o encadeamento de memórias diretas e “indiretas”, públicas e privadas, sensoriais e representativas, como conferir, neste quadro, uma expressão audiovisual a formas de violência não-figuradas e aparentemente infiguráveis? Watanabe opera uma ruptura no cânone e nas modalidades poéticas e epistémicas de figuração da violência e do trauma. As valas comuns e os despojos mortais são figurados por meio de um regime de figuração que se aproxima da anti-figuratividade e que convoca, portanto, reflexões ligadas aos limites e à própria possibilidade de representação. É através de um conjunto de movimentos de câmara térreos ora cadenciados, ora descompassados, de ritmos variáveis, rompendo as regras da continuidade narrativa já que ascendentes, descendentes e laterais, multi-direcionais, rizomáticos, numa narrativa que mostra as suas próprias fraturas, que Watanabe dá a ver o interior das valas comuns e a área envolvente. Se a figuração daquilo que é desprovido de vida remete também para questões ligadas à própria ontologia do cinema, e à passagem entre o orgânico e o inorgânico, o vivo e o não-vivo, essa liminaridade é resolvida através de um exemplar trabalho do desenquadramento, da desfocagem e do campo sonoro. O confronto com o passado e a sua atualização dinâmica no presente emergem, portanto, de um impulso quasi-corporal, a resposta do olhar filmante, tecnologicamente mediatizado, aos corpos filmados, impulso que os traz de volta à vida e lhes devolve a condição de actantes, arrancado-os à posição, potencialmente binária e essencialista, de vítimas.
“Bullet” expande e reestrutura o sistema formal e epistêmico de “Liminal”. A curta-metragem figura o exterior e o interior do crânio de um dos inúmeros cadáveres não identificados, alegadamente de membros do Sendero Luminoso, armazenados no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses de Lima. A câmara de Watanabe penetra o crânio, perfurado por uma bala, dissolvendo as fronteiras entre o interior e o exterior, o passado e o presente, a história e a memória. Uma vez mais, a não figuratividade aparece como condição de visibilidade e inteligibilidade, ato de natureza formal e epistêmica que não só coloca de viés os pressupostos da política memorialística oficial, como também oferece elementos de reflexão fundamentais no contexto do atual genocídio na Palestina, quando parece reconfigurar-se a relação entre o modelo representacional, o visível e o inteligível, bem como entre o ver e o agir.
Raquel Schefer
‘Amérika: Gestos Cinematográficos para Reencantar o Mundo’ is a Research Program curated and mentored by Raquel Schefer
Maya Watanabe
A artista visual e cineasta Maya Watanabe trabalha com vídeo-instalações. Recentemente, as suas obras foram expostas em instituições e eventos tais como, entre outros, De Pont Museum, Tilburg (2021), Museu MAXXI, Roma (2019); MALI – Museo de Arte de Lima (2019); Rose Art Museum, Massachusetts (2019); La Casa Encendida, Madrid (2019); Palais de Tokyo, Paris (2019); Kyoto Art Center, Kyoto (2017); Das Fridericianum, Kassel (2016); Matadero, Madrid (2014). Aproximando-se da história política contemporânea do Peru através de procedimentos cinematográficos experimentais, o trabalho de Watanabe foi exibido em bienais de arte como a Videobrasil, a 13ª Bienal de Havana, a Asian Art Biennial, a 2ª Wuzhen Contemporary Art Exhibition e a Bienal de Beijing. A artista trabalhou também como diretora artística audiovisual em produções performativas no Peru, em Espanha, na Áustria e em Itália. Watanabe vive e trabalha em Amesterdão. É docente na Rietveld Academie e doutoranda no Goldsmiths College (University of London), Department of Visual Cultures.
Raquel Schefer
Raquel Schefer é investigadora, realizadora, programadora e Professora Associada no Departamento de Cinema e Audiovisual da Universidade Sorbonne Nouvelle. Doutorada em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Sorbonne Nouvelle, é mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine de Buenos Aires e licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Foi investigadora convidada na Universidade da Califórnia, Los Angeles e bolseira de pós-doutoramento da FCT no CEC/Universidade de Lisboa, no IHC/Universidade Nova de Lisboa e na Universidade do Western Cape. É co-chefe de redação da revista de teoria e história do cinema “La Furia Umana”.